MÁRCIA MORAES CORRÊA
Pedagoga,
Especialista em Educação Infantil,
Especialista em Psicopedagogia,
Professora da Escola Municipal de
Educação Infantil Prof.
Ernest Sarlet/Novo Hamburgo/RS
A DIFERENÇA ENTRE DISTÚRBIO, TRANSTORNO E DIFICULDADE DE APRENDIZAGEM
A definição sobre os distúrbios, transtornos, dificuldades ou problemas de aprendizagem é uma questão bastante inquietante na atuação dos profissionais que atuam no diagnóstico, prevenção e intervenção do processo de aprendizagem. A literatura teorizada é extensa e muitas vezes contraditória, e por esta questão será enfatizada a análise de Romero (1995 in Coll) a fim de diferenciar os diversos conceitos que envolvem essa temática.
Os termos distúrbios, transtornos, dificuldades e problemas de aprendizagem, segundo Moojen (1999), têm sido utilizados de forma aleatória, tanto na literatura especializada como na prática clínica e escolar, para designar quadros diagnósticos diferentes.
França (1996 in Sisto), na mesma perspectiva, coloca que a utilização dos termos distúrbios, problemas e dificuldades de aprendizagem é um dos aspectos menos abordados para aqueles que iniciam a formação em Psicopedagogia. Segundo o autor “aparentemente os defensores da abordagem comportamental preferem a utilização do termo distúrbio, enquanto os construtivistas parecem ser adeptos do termo dificuldade”. Ainda de acordo com o autor, aparentemente o termo dificuldade está mais relacionado à problemas de ordem psicopedagógica e/ou socioculturais, ou seja, o problema não está centrado apenas no aluno, sendo que essa visão é mais freqüentemente utilizado em uma perspectiva preventiva; por outro lado, o termo distúrbio está mais vinculado ao aluno, na medida em que sugere a existência de comprometimento biológico, sendo mais utilizado pela perspectiva clínica.
Segundo Romero (1995 in Coll) as posições nem sempre se limitam a uma ou outra dessas categorias: será difícil encontrar, nos dias de hoje, um defensor de causas neurológicas que descarte completamente a importância dos diversos determinantes ambientais, assim como que quem enfatiza a importância dos fatores puramente acadêmicos não pode ignorar a influência de certos processos psiconeurológicos e ambientais.
DISTÚRBIOS DE APRENDIZAGEM
Segundo Collares e Moysés (1992), a expressão distúrbio de aprendizagem teria o significado de “anormalidade patológica por alteração violenta na ordem natural da aprendizagem”, naturalmente localizada em quem aprende. Assim sendo, um distúrbio de aprendizagem obrigatoriamente remete a um problema ou a uma doença que acomete o aluno em nível individual e orgânico.
Ainda de acordo com as autoras acima citadas:
Distúrbios de aprendizagem é um termo genérico que se refere a um grupo heterogêneo de alterações manifestas por dificuldades significativas na aquisição e uso da audição, fala, leitura, escrita, raciocínio ou habilidades matemáticas. Estas alterações são intrínsecas ao indivíduo e presumivelmente devidas à disfunção do sistema nervoso central. Apesar de um distúrbio de aprendizagem poder ocorrer concomitantemente com outras condições desfavoráveis (por exemplo, alteração sensorial, retardo mental, distúrbio social ou emocional) ou influências ambientais (por exemplo, diferenças culturais, instrução insuficiente/inadequada, fatores psicogênicos), não é resultado direto dessas condições ou influências”. (Collares e Moysés, 1992 p. 32).
O uso da expressão distúrbio de aprendizagem tem se ampliado de maneira desenfreada entre os professores, afirmam Collares e Moysés (1992), apesar da maioria desses profissionais nem sempre conseguir explicar claramente o significado dessa expressão ou os critérios em que se baseiam para utilizá-la no contexto escolar. Na opinião das autoras a utilização desmedida da expressão distúrbio de aprendizagem no cotidiano escolar seria mais um reflexo do processo de patologização da aprendizagem ou da biologização das questões sociais.
TRANSTORNOS DE APRENDIZAGEM
O termo transtorno também aparece seguidamente, embora seja um conceito menos amplo, pois se refere a um conjunto de sintomas ou comportamentos clinicamente reconhecível associado, na maioria dos casos, a sofrimento e interferência com funções pessoais, segundo a Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da Classificação Internacional de Doenças (CID –10), elaborado pela Organização Mundial de Saúde.
A respeito dos Transtornos de aprendizagem, o CID-10 especifica os transtornos específicos do desenvolvimento das habilidades escolares, ou seja:
(...) são transtornos nos quais os padrões normais de aquisição de habilidades são perturbados desde os estágios iniciais do desenvolvimento. Eles não são simplesmente uma conseqüência de uma falta de oportunidade de aprender nem são decorrentes de qualquer forma de traumatismo ou de doença cerebral adquirida. Ao contrário, pensa-se que os transtornos originam-se de anormalidades no processo cognitivo, que derivam em grande parte de algum tipo de disfunção biológica (CID - 10, 1992 p.236).
Ainda conforme o CID – 10 (idem), os Transtornos específicos do desenvolvimento das habilidades escolares são compostos por grupos de transtornos manifestados por comprometimentos específicos e significativos no aprendizado de habilidades escolares. Embora não sejam resultado de outros transtornos (como o retardo mental, entre outros), os transtornos específicos do desenvolvimento das habilidades escolares geralmente ocorrem junto com outras síndromes clínicas, como por exemplo, o transtorno de déficit de atenção.
As possíveis causas dos Transtornos específicos do desenvolvimento das habilidades escolares não são conhecidas, mas supõe-se que exista a predominância de fatores biológicos, os quais interagem com outros fatores e, na sua deficiência resultam na não-aprendizagem.
DIFICULDADES OU PROBLEMAS DE APRENDIZAGEM
Pain (1989) considera a dificuldade de aprender como um sintoma e apresenta quatro fatores que precisam ser considerados no processo diagnóstico de um problema de aprendizagem:
1. Fatores orgânicos: estão relacionados com o funcionamento anatômico, órgãos dos sentidos e sistema nervoso central (importante analisar a visão e a audição, realizar investigações neurológicas, funcionamento glandular, alimentação e sono);
2. Fatores específicos: estão relacionados diretamente às especificidades do sujeito, mas não na área orgânica, e sim na área da linguagem, organização espaço-temporal, articulação fonoarticulatória e lecto-escrita (afasias).
3. Fatores psicógenos: neste aspecto é indispensável diferenciar as dificuldades de aprendizagem advindas de um sintoma ou de uma inibição, ou seja, quando relacionado a um sintoma, o não aprender possui um significado inconsciente; quando relacionado a uma inibição, a dificuldade de aprendizagem é conseqüência de uma retratação do ego e conseqüentemente uma diminuição das funções cognitivas. Enquanto que a inibição diminui a função cognitiva, o sintoma transforma a mesma função.
4. Fatores ambientais: estão relacionados às condições ambientais que favorecem ou não a aprendizagem do sujeito, ou seja, meio ambiente material e social, abundância de estímulos, acesso à cultura, ideologia e valores vigentes na sociedade e na família do sujeito.
Fernandez (2001) afirma que tanto o problema de aprendizagem (sintoma) quanto o que forma uma inibição instala-se em um indivíduo e afeta a dinâmica de articulação entre os níveis de inteligência, desejo, organismo e corpo, resultando num aprisionamento da inteligência e da corporeidade por parte da estrutura simbólica inconsciente. Ainda para a autora os problemas de aprendizagem podem ser de ordem sintomática ou reativa. Os de ordem sintomática são as inibições e, para entendê-las, é necessário descobrir a história familiar do sujeito, utilizar um tratamento psicopedagógico clínico que liberte a inteligência e mobilize a circulação patológica do conhecimento em seu grupo familiar. Os problemas reativos afetam o sujeito sem afetar a inteligência, são os bloqueios, que podem acontecer devido a um choque entre o aprendente e a sua instituição educativa.
AS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM NA ATUALIDADE
No contexto atual, os problemas de desatenção e de hiperatividade, tão freqüentemente citados como manifestações de dificuldades de aprendizagem, podem ser considerados como sintomas de uma sociedade que está desatenta aos seus aspectos humanos mais profundos e que oferece incessantemente um excesso de estímulos que submete o sujeito a um tipo de aprendizagem e adaptação rápida, constante e muitas vezes fragmentada.
Sabe-se que o processo de aprendizagem pressupõe uma contextualização, ou seja, o indivíduo e seu contexto precisam ser reconhecidos e simbolizados. Para isso é necessário que os pais dediquem tempo aos seus filhos e à educação dos mesmos. Os objetos da realidade devem ter uma durabilidade e uma cronologia que permita processá-los de forma lenta e gradual. No entanto, o caráter instantâneo, não cronológico e descartável do mundo atual, acaba por impedir uma construção sólida e duradoura do conhecimento, gerando certa ansiedade por uma busca que nunca é considerada suficiente.
Neste contexto, as dificuldades de aprendizagem podem ser compreendidas como expressão de certo "mal-estar" de se viver em uma sociedade veloz e instantânea, que cobra, determina e requer constantemente a homogeneização e, ao mesmo tempo, ilude com a promessa do alcance do prazer, sem revelar os seus custos.
Embora os sintomas de desatenção e de hiperatividade sejam decorrentes de vários fatores, envolvendo também aspectos ligados às disfunções neurológicas, podemos pensar que algumas crianças, à parte dessa etiologia, acabam tomando-se hiperativas como tentativa de acompanhar e de se adaptar a uma sociedade que clama por mudanças rápidas a todo tempo. Neste sentido, essa atividade exacerbada da criança, que é uma das causas das dificuldades de aprendizagem e que compromete a capacidade de atenção, uma vez contextualizada, pode ser pensada como uma forma de ansiedade que reflete um modelo familiar que, por sua vez, é determinado pelo sistema social e econômico.
Além disso, essa mesma sociedade exclui constantemente aqueles que não se adaptam ao seu ritmo e às suas pré-determinações. Isso gera nas crianças com baixo rendimento escolar, uma sobrecarga e uma sensação de incapacidade, que interfere sobremaneira em sua personalidade como um todo.
Para Polity (1998), a dificuldade de aprendizagem pode ser definida como um sintoma psicossocial, com pelo menos três constituintes básicos: a criança, a família e a escola. Sua evolução está intimamente relacionada com a estrutura e dinâmica funcional do sistema familiar, educacional e social no qual a criança está inserida
Deste modo, as dificuldades de aprendizagem devem ser analisadas e compreendidas, não somente como uma falha individual de um sujeito que resiste a adequar-se ao pré-estabelecido, mas como uma confluência de fatores que incluem a escola, a família, os professores e o sistema de relações sociais envolvidos.
A INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA NAS DIFICULDADES DE APRENDIZAGEM
Cabe ao psicopedagogo, um olhar atento no sentido de contextualizar os problemas de aprendizagem na atualidade e compreender tanto a dinâmica familiar de onde emergiu o sintoma, quanto os mecanismos de exclusão desencadeados pela escola e pela sociedade.
Nesta mesma perspectiva, é importante ao psicopedagogo, ajudar a família a tomar consciência dos mecanismos que determinaram a formação do sintoma apresentado pela criança, que muitas vezes se apresenta não só como o porta-voz de uma dinâmica familiar comprometida, mas de todo o funcionamento de seus membros.
A inclusão do suporte familiar no atendimento psicopedagógico da criança na atualidade constitui um recurso valioso que pode auxiliar as dificuldades encontradas por toda a família. O impacto positivo do ambiente familiar sobre o desempenho da criança na escola depende de dois fatores: experiências ativas de aprendizagem que promovem competência cognitiva e um contexto social que oferece auto-confiança e interesse ativo em aprender.
A compreensão do contexto mais amplo possibilita à criança a formação de novas construções que redefinam a carga de responsabilidade, distribuindo aquilo que anteriormente foi determinado como o sintoma de um, por todos os envolvidos: família, escola e sociedade, formando assim, uma verdadeira rede relacional, evitando que as dificuldades de aprendizagem enquanto sintoma sejam o reflexo de um descaso dos pais, da sociedade e da escola com as crianças.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento da CID-10: Descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Organização Mundial de Saúde (Org.). Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
COLLARES, L. E MOYSÉS, A. História não contada dos distúrbios de aprendizagem. Cadernos CEDES nº28, Campinas: Papirus, 1992, p. 31-48.
DSM-IV – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
FERNÁNDEZ, A. Os idiomas do aprendente. Porto Alegre: Artes Médicas: 2001.
FRANÇA, C. Um novato na psicopedagogia. In: SISTO, F. et al. Atuação psicopedagógica e aprendizagem escolar. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
MOOJEN, S. Dificuldades ou transtornos de aprendizagem? In: RUBINSTEIN, E. (org.) Uma prática, diferentes estilos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1999.
PAIN, S. Diagnóstico e tratamento dos problemas de aprendizagem. Porto Alegre: 1985.
POLITY, Elizabeth. Ensinando a Ensinar. São Paulo: Ed. Lemos,1997.
POLITY, Elizabeth. Psicopedagogia: um enfoque sistêmico. São Paulo: Empório do Livro, 1998.
ROMERO, J. F. Os atrasos maturativos e as dificuldades de aprendizagem. In: COLL C., PALACIOS, J., MARCHESI, A. Desenvolvimento psicológico e educação: necessidades educativas especiais e aprendizagem escolar. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
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